Ex-ancião: ‘não tenho mais a lavagem cerebral eu que tinha lá dentro’
Nos documentos oficiais da Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová, que tem sede nos EUA e tem diversas publicações e comunicados enviados para as filiais no mundo, há orientações explícitas para que anciãos resolvam quaisquer problemas entre membros internamente.
Como explicam esses documentos, pessoas acusadas de cometer crimes e irregularidades são julgadas por anciãos em uma reunião chamada ‘comissão judicativa‘. Mas para que uma acusação gere uma comissão — incluindo casos de abuso sexual de crianças ou violência contra a mulher — é exigido que haja duas testemunhas. Tudo isso está detalhado no livro dos anciãos, que é acessível somente aos líderes e não é compartilhado com os outros fiéis.
“Anciãos não estão autorizados pelas Escrituras e tomar ação congregacional a menos que haja confissão ou duas testemunhas confiáveis”, diz trecho de uma carta de 2012 sobre abuso sexual enviadas pela sede para as filiais no mundo. Há nove cartas sobre o assunto datando desde 1992 — a carta de 2012 ordena as congregações a tirar do arquivo e destruir todas as cartas anteriores.
As cartas sobre pedofilia repassadas pela sede para as filiais dizem que é possível manter um abusador na congregação desde que ele tenha “se arrependido”.
“O departamento de serviço [jurídico] vai dar orientações quando uma comissão judicativa conclui que alguém culpado de abuso sexual de menores está arrependido e pode permanecer na congregação”, diz uma carta de 2016.
O ex-ancião Marcus Borges*, que deixou a religião no início de 2020, diz que “a prática de lidar com o caso internamente, sem levar às autoridades”, dura até hoje. “E essa exigência das testemunhas [para que a pessoa seja desligada] faz com que a maioria dos casos sejam ignorados”, diz ele.
“É uma seita com uma Justiça paralela, que você desestimula as pessoas a procurar a Justiça”, acrescenta o ex-ancião.
“Você tinha que dizer: ‘se quiser procurar a polícia é uma questão sua, mas tem que pensar que vai causar um vitupério para o nome de Jeová'”, conta Eduardo. “É uma instrução que você é obrigado a seguir. Se você não seguir, você perde privilégios, você é desqualificado como ancião”, afirma.”Eu já cheguei a burlar as regras para desassociar um pedófilo.”
Ele conta que teve que lidar com cinco denúncias de abuso sexual contra crianças ao longo dos dez anos que trabalhou como ancião — as discordâncias dele com os métodos da organização, diz, acabaram por eventualmente levá-lo a abandonar a religião.
“Teve um tio, esse conseguimos desassociar, que abusou de duas sobrinhas crianças”, relembra. “O homem nunca foi levado à Justiça”, conta. “Eu hoje me arrependo muito de ter participado disso, mas é porque eu não tenho mais a lavagem cerebral eu que tinha lá dentro.”
*os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados