DEPOIMENTOS

O drama para se livrar de uma ‘seita destrutiva’

Quando entrou pela primeira vez num Salão do Reino das TJ?
Era ainda bem pequenino. Fui levado pela minha mãe. Na altura, ela era apenas simpatizante, estudava a Bíblia com as TJ. E, nas oportunidades que tinha de ir às reuniões – o meu pai não era nem é TJ –, eu acompanhava-a. De modo regular, comecei a frequentar as reuniões a partir dos meus dez anos.

O que levou a sua mãe a aproximar-se das TJ?
Estava numa fase complicada da vida. Emocionalmente não se encontrava bem, a vida familiar era problemática e soube depois que até ponderava o suicídio.

E encontrou o consolo de que precisava?
Claro que sim. Uma pessoa que chega a uma congregação é muito bem recebida, acarinhada. Tal recepção faz com que essa pessoa acredite que as TJ são diferentes de tudo o resto. É apresentado o lado muito bonito, amoroso, muito simpático e atraente do grupo, que se considera uma família. É o que os peritos em seitas destrutivas e grupos de alto controlo chamam de love bombing, o bombardeio de amor, uma técnica de “isca” muito usada para cativar novos membros. Mas, depois de a pessoa entrar, e de se encontrar muito envolvida com o grupo, as coisas “acalmam”.

Como se afastou da organização?
Aos poucos, eu e a minha mulher deixámos de ir às reuniões. Em 2018, tive a comissão judicativa, em que me dissociei, e na qual entreguei uma carta em que explico ao pormenor as minhas discordâncias.

Qual foi a reação da sua mãe quando se afastou?
Da minha mãe e dos meus sogros, que também são TJ. Os laços não foram rompidos porque decidimos nos afastarmos discretamente – caso contrário, seria um “escândalo”. É claro que ficaram tristes, mas respeitaram a nossa posição. Devia ser assim em todos os casos.

Disse “seita destrutiva”?
Sem dúvida! Já pesquisei muito sobre o assunto e as TJ preenchem a maior parte das características de uma seita destrutiva. Ou seja, os líderes decidem tudo o que é certo ou errado na vida dos membros do grupo. É instigado um pensamento do “Nós vs. Eles” e os “irmãos” são orientados para reduzir ao máximo a socialização com pessoas de fora do grupo. Tudo o que uma TJ faz ou deixa de fazer é em função da doutrina, dos ideais do grupo. A vida gira em torno da religião. E os que entram em discordância, ou deixam de acreditar e de seguir o grupo, são expulsos e tratados como “apóstatas”, “filhos do Diabo”, “doentes mentais”…

Em concreto, isso traduz-se em quê, na sua opinião?
Não é a minha opinião, são fatos! Nas TJ, se alguém verbalizar, em público ou mesmo em privado, algo que vá contra o ensino da organização, essa pessoa fica marcada, de maneira automática, e com a vida complicada. Depois, ou se retrata, humilhando-se e arranjando algum tipo de argumento que minimize a ação “contra a organização”, ou é expulsa como “rebelde”. Nunca se sai bem das TJ, um grupo de alto controle em que a pessoa tem de aceitar a 100% o que a organização diz.

Esse retrato é um pouco vago…
Só estando lá dentro é que se conhecem os reais perigos do envolvimento com este tipo de grupo religioso. Há pais que chegam a pôr os filhos fora de casa. E isso é dado como exemplo. Há dois anos, num congresso das TJ realizado em Portugal, foi passado um vídeo que dramatizava a história de uma mulher que, ao envolver-se romanticamente com um colega de trabalho, acabou expulsa da religião. Viu-se então renegada pelos amigos e pela família, que a pôs fora de casa. Mas, mais de 15 anos depois, já mãe de dois filhos, regressou à congregação e à “verdadeira felicidade”. Os pais, no entanto, só a aceitaram de volta depois de a sua readmissão ter sido publicamente anunciada à congregação. É pura chantagem emocional.

Qual é a responsabilidade da organização no caso do corte de laços familiares?
A família, que está dentro da religião, é incentivada a cortar laços com esse parente. Há pais que deixam de falar com os filhos, filhos que deixam de falar com os pais, e isto estende-se a todos os familiares. Basta pesquisar um fórum de ex-TJ para ver relatos muito, muito tristes, até de pessoas que depois se suicidaram. Numa comunidade muito fechada ao exterior, como é a das TJ, em que a pessoa é incentivada a viver para o grupo, no interior do qual faz todas as suas amizades e trabalha de forma intensa para a organização, ficar, de repente, sem ninguém… O ostracismo e a “morte social” acontecem num instante. Basta ser anunciado na tribuna: “Fulano(a) tal já não é mais TJ.” O corte é imediato. Passam na rua ao lado dessa pessoa e nem lhe olham na cara. Ou se olharem, o mais provável é que o façam com desdém ou com uma certa tristeza. Consideram que está perdida, que morreu para Jeová. E há pessoas que não aguentam esse corte radical – e caem na depressão.

Tinha autonomia de atuação?
Não há autonomia de ação face às determinações do Corpo Governante. As congregações, passe a obedecer, funcionam como “franchisings” religiosos. Imagine-se alguém que quer abrir um McDonald’s: essa pessoa tem de cumprir tudo o que a marca decide, quanto a marketing, preços, confecção dos produtos e por aí vai. Nas TJ, o modelo é o mesmo. Todas as orientações vêm da sede mundial, e os Beteis de cada país enviam para as respetivas congregações. Há, ainda, os superintendentes de circuito, que vão todos os anos visitar as congregações, para verificarem se está tudo “conforme manda a lei”.

Daí podem resultar punições?
Se houver anciãos que não estejam “em linha”, podem ser destituídos das funções. Não têm autonomia para fazer nada que não esteja na cartilha da organização. Não podem decidir por eles mesmos agir desta ou daquela maneira, na maioria dos casos. Têm as orientações e, havendo dúvidas, ligam para o Betel, para receber instruções. É o que acontece, por exemplo, com denúncias de abuso sexual de crianças. As regras da organização exigem que haja pelo menos duas testemunhas – que, como é óbvio, nunca existem. E, por isso, os casos têm sido deixados “nas mãos de Jeová”.

E hoje acha que deve desculpas a alguém que foi expulso da sua congregação?
Infelizmente, participei uma vez numa comissão judicativa e mais tarde na comissão de readmissão da pessoa em causa. São situações emocionalmente dolorosas para todos. Na altura, agi de boa-fé. O que comecei a fazer, enquanto ainda era ancião, foi um trabalho em segredo de ativismo, de denúncia de más práticas, expondo online aquilo de que discordava. No fundo, foi e é a minha forma de “desmanchar” algum mal que eventualmente possa ter cometido enquanto ancião.

As suas primeiras dúvidas doutrinais surgiram com a questão da recusa das transfusões de sangue?
No princípio, essa era a questão que me preocupava mais. A pessoa pode viver ou morrer por causa de uma interpretação doutrinal errada, o que para mim se tornou chocante quando passei a pesquisar o assunto a fundo.

Pode explicar melhor?
A organização começou por proibir todo o uso do sangue no final dos anos 1940, tanto as frações primárias – o plasma, as plaquetas, os glóbulos brancos e os vermelhos –, quanto as secundárias – derivados como a imunoglobulina, para doentes auto-imunes, ou os Fatores VIII e IX, que os hemofílicos precisam. Dizia que toda a utilização do sangue era errada. Usava textos bíblicos da Lei Mosaica que determinam que o sangue – símbolo da vida –, quando sai do corpo do animal, deve ser inutilizado. Quando um israelita matava um animal para comer, ele era sangrado e simbolicamente devolvia-se a Deus aquela vida que tinha sido tirada. Já a partir dos anos 2000, a organização começa a enviar informação a dizer que, “segundo a consciência de alguns”, usar frações secundárias não é o mesmo que utilizar o sangue. Inicia-se uma distinção entre o uso do “sangue bom” e do “sangue mau”, por assim dizer.

Uma decisão perigosa…
Conheci casos de pessoas que morreram por recusarem a transfusão de sangue, e outras que, porque a aceitaram, foram expulsas. E, de repente, a organização começa a dizer que alguns podem aceitar o uso de frações ditas “secundárias” de sangue. Fiquei confuso e, pela primeira vez, com dúvidas. Pensei: se o uso do sangue é condenado por Deus, seja na totalidade ou em frações – as TJ têm essa noção errada da transfusão de sangue total, quando é sempre uma transfusão de componentes do sangue em separado –, havia ali uma incoerência doutrinal face aos ensinamentos bíblicos que, no passado, tinha recebido na organização.

Extremismo?
Uma Testemunha está habituada a ouvir que as dúvidas são más, provêm de Satanás, e por isso atira-as para trás das costas. “Jeová há de providenciar novos entendimentos e esclarecimentos sobre o assunto” – é o que se pensa. Mas eu fiz muitas pesquisas e percebi a trapalhada doutrinal que ali estava. Nem os judeus, que seguem de uma forma muito mais rigorosa a “lei do sangue”, conforme está no Antigo Testamento, aceitam a doutrina de recusa da transfusão. As TJ, porém, são farisaicas ao ponto de colocarem vidas em causa.

Mas a decisão final está nas mãos das pessoas…
Não é bem assim. Verifiquei que há muita informação deturpada, em que a organização exagera os defeitos, esconde os benefícios, e diaboliza o assunto de tal maneira que a pessoa fica apavorada. Acabam dizendo que, se a pessoa aceitar uma transfusão, está condenada por Deus, não vai para o “paraíso”. E mais: arrisca-se a ser expulsa da organização, o que lhe acarreta outro peso – a decisão terrível entre aceitar a transfusão, que pode resultar na expulsão e na perda dos laços familiares e dos amigos, ou não aceitar e correr um sério risco de vida.

Como vive hoje a sua religiosidade?
Não diria a minha religiosidade, mas a minha espiritualidade. Deixei de acreditar na religião organizada. A maior parte das religiões acabam por desempenhar um papel de controle, de manipulação das pessoas – dos seus medos e angústias. E, como no caso das TJ, muitas vezes as pessoas não veem mais nada, como se lhes pusessem vendas nos olhos, e perdem todo o sentido crítico.

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